Este texto é uma opinião pessoal da autora, e não a opinião dos membros da diretoria da SESUNIPAMPA ou do ANDES - Sindicato Nacional.
No momento em que nos encontramos dentro da Universidade discutindo progressão funcional, invariavelmente nos deparamos com a questão do mérito. Mas o que é mérito?
Mérito, segundo Wikcionário,
1. Conjunto de características que distinguem algo ou alguém como bom e apreciável. Tinha o mérito dos melhores.
2. valor, aptidão, capacidade. Ninguém lhe negava mérito na profissão.
Desta forma, mérito pode ser um conceito para classificação relativa (um em relação ao outro), ou para classificação absoluta (capacidade e aptidão para realizar tal tarefa). Sendo assim, é muito importante que possamos pensar que tipo de classificação, e portanto, de que mérito estamos falando quando elaboramos uma proposta de progressão para a nossa Universidade. Desta forma, pretendo neste texto colocar alguns dados para reflexão de todos nós, que espero poder ajudar neste debate.
O mérito de classificação relativa é o mérito que agências como Capes e CNPq usam para concessão de financiamento de projetos. Devido ao orçamento exíguo destinado por nossos governos à Ciência e Tecnologia, a lógica do mérito relativo tem sido implementada e serve de base para o julgamento dos projetos a serem contemplados. No entanto, dentro desta concepção de mérito adotada, há várias formas de julgar o mérito de um proponente em relação ao outro, mas aqui no Brasil adotamos apenas uma forma: a da quantificação de produção acadêmica.
Para poder fazer um contraponto a esta quantificação de produção acadêmica, precisamos olhar para outros modelos. Tomemos como exemplo os países de reconhecida excelência acadêmica e desenvolvimento científico: Estados Unidos e países da Comunidade Européia. Há alguns anos, a lógica da quantificação de produção acadêmica (número de artigos, número de orientandos, número de apresentações, etc.) vem sendo questionada como um sistema falho de medição do mérito acadêmico relativo. Não é preciso conhecer muito sobre o assunto para entendermos porque este sistema é falho: produção acadêmica que não leva a mudanças de paradigma ou não é apreciada pela comunidade acadêmica é uma produção que não tem voz, quase que inexistente. Não significa que ela não tenha valor; significa que, dentre os problemas e as questões levantadas pela comunidade acadêmica como sendo prioritárias, estas estão descartadas. A escolha das prioridades depende, obviamente, da conjuntura histórica e de questões políticas, sociais e financeiras. Problemas que não eram prioridade numa dada época, podem ser em outra. Problemas para os quais há mais financiamento disponível podem ser mais atrativos que os que não possuem financiamento. Problemas que visam resolver questões urgentes de ordem social e política podem receber mais atenção da comunidade.
Por este motivo, na Europa e Estados Unidos, muitas vezes os pesquisadores são julgados segundo o impacto de seus trabalhos nas suas áreas de atuação. Foi criado um novo índice de classificação de produção, o índice H, que basicamente mede o quanto cada pesquisador é citado por outros pesquisadores. A lógica que quer se implementar com este índice H é de que a qualidade é mais importante que a quantidade. Neste esquema, provavelmente, Albert Einstein seria um pesquisador com um índice H muito alto, devido ao impacto de suas teorias da relatividade e seus trabalhos em mecânica quântica, bases de toda a tecnologia moderna que possuimos hoje. É claro que este índice H tem problemas e leva a distorções no sistema: basta que um pesquisador se associe a um vasto grupo de outros pesquisadores que se ajudam mutuamente, citando uns os artigos dos outros. Mas a ideia de que qualidade é mais importante que quantidade é a tônica para a discussão de mérito nesses países, e é esta a prática para os julgamentos de mérito relativo que estão sendo adotadas.
No Brasil, ainda estamos um passo atrás em que "quem mais faz, mais ganha". A produção em massa de artigos, a formação em massa de alunos de pós-graduação, entre outros tipos de produção, é o que vale para os julgamentos das agências de fomento. Não importa que esta produção seja mal feita ou inexpressiva; é preciso manter a roda girando. Muitos chamam isso de "produção fast food", porque lembra muito o sistema de produção em massa de restaurantes fast food, onde o que importa é o tempo de produção, e não a qualidade. Isso serve por um tempo: quando precisamos de algo rápido para nos saciar a fome, o fast food é perfeito. Mas no dia-a-dia, ele se mostra insuficiente para prover todas as vitaminas do corpo, aumenta o colesterol e a obesidade. Então, se comermos muito fast food, adoecemos. E é isso que acontecerá com a nossa ciência no Brasil se continuarmos a produzir em massa: nossa ciência será insuficiente, doente e carente de inovação, de progresso, de significado.
Neste esquema, o ilustríssimo Albert Einstein não seria pesquisador do CNPq, muitos menos cadastrado a dar aulas na pós-graduação; ou seja, na visão da comunidade pró-fast food, um pária. Este sistema já é ultrapassado, mas insistimos em perpetuá-lo porque ele é cômodo e conveniente a quem se beneficia dele, ou seja, os produtores em massa. Como seria se, ao invés de publicarmos 20 artigos com mudanças insignificantes entre si, tivéssemos que fazer um artigo apenas com todos os resultados dos 20? Acabariam as ideias?? Ou teríamos que nos adaptar a uma outra forma de fazer ciência, mais engajada e mais exigente?
Já o mérito de classificação absoluta não passa pela comparação entre indivíduos com a mesma função, e sim a avaliação da capacidade do indivíduo de desempenhar as atividades da sua profissão/função. No nosso caso, nossa função segundo nosso contrato de trabalho é ensinar, pesquisar, fazer extensão e gestão. Não todas as coisas ao mesmo tempo, mas o ensino nos é compulsório, e as outras atividades são escolhidas de acordo com nossas formações, vontades, oportunidades. Ninguém consegue atuar em todas as áreas ao mesmo tempo - ensino, pesquisa, extensão, gestão - pois nosso tempo é finito. Mas certamente conseguimos fazer bem ao menos duas delas.
Numa avaliação de mérito absoluta, deveríamos olhar para a capacidade do indivíduo de ensinar e pesquisar, se é isso que ele faz nas suas 40 horas de jornada semanal. Deveríamos avaliar se ele atende às turmas pelas quais tem responsabilidade, e se ele consegue obter resultados da sua pesquisa ou fazer algum progresso em busca destes resultados. Na minha opinião, dada a nossa função na Universidade e nosso contrato de trabalho, deveríamos ser avaliados desta maneira: a nossa capacidade de desempenhar as funções, sem quantitativos de produção (mas se ela existiu) e comparações com outros colegas na mesma função. As comparações e a contagem da produção científica já é feita pela Capes e o CNPq, mas não são estas agências que regulam a nossa progressão, nem a nossa carreira: é a Universidade que estamos inseridos que tem esta responsabilidade, e o contrato de trabalho que firmamos ao fazer parte dela.
Portanto, a proposta que apresentamos para progressão funcional é baseada no mérito absoluto e no nosso contrato de trabalho. Entendemos que a quantificação de produção não significa qualidade, mas sim um número que serve a uma classificação relativa, e não das nossas funções. Por isso, deixo o convite a todos que lerem este texto para que leiam com atenção nossa proposta e, se possível, critiquem, sugiram, discutam. É preciso nos apropriarmos do processo de decisão do futuro da nossa carreira dentro da instituição.
Dáfni Marchioro (docente da Unipampa/Bagé)
P.S.: aos que quiserem ter acesso ao texto, mandem e-mail para dafnimarchioro@yahoo.com.br que envio a proposta.
Enquanto considero correta a identificação de duas modalidades do conceito de ‘mérito’, gostaria de chamar a atenção para uma questão sobre esta reflexão: na relação entre mérito absoluto e mérito relativo, a dificuldade de se separar as formas de avaliação baseadas nas duas concepções e o problema da avaliação objetiva e subjetiva.
ResponderExcluirA avaliação do mérito absoluto, como entendida, precisa ser baseada em critérios subjetivos, enquanto apenas a avaliação do mérito relativo pode ser objetivada. Pois, de que modo será feita a avaliação de uma característica que represente um mérito absoluto se não pelo julgamento de valor das partes interessadas? Já o mérito relativo, baseado na quantidade, pode ser avaliado com base em critérios objetivos, justamente pelo seu caráter quantificacional. É a quantificação que permite a avaliação objetiva. A avaliação do mérito absoluto, exige a construção de um consenso em torno de determinados critérios. Na verdade, estou apontando para a dificuldade de se separar completamente as duas formas de mérito.
Qual o modo mais eficiente de se obter qualidade em relação à alguma forma de produção? Pela padronização desta qualidade, ou pela seleção desta qualidade a partir da quantidade? Conforme estou tentando explicar, a maneira mais direta de se alcançar a qualidade é pela quantidade. Afinal, o que é ‘qualidade acadêmica’? Como determinar e avaliar esta qualidade, senão por critérios subjetivos?
Aproveitando a apresentação das definições dos verbetes, proponho estender um pouco a reflexão do significado do termo ‘mérito’: ele possui relação com o termo ‘merecimento’, assim aquele que possui mérito por alguma coisa, ‘merece’ o reconhecimento de alguma qualidade. Veja que mérito no sentido absoluto é bastante difícil de se distinguir, já que quem possui mérito é sempre em relação a alguma coisa, qualidade ou capacidade. Assim, aquele que merece alguma retribuição o faz devido a uma qualidade que lhe é intrínseca, ou então, pela superação de uma dificuldade a partir de um determinado esforço. Estas duas formas de merecimento, ou de obtenção de mérito, definem justamente as duas formas de mérito identificadas, mérito absoluto e mérito relativo, respectivamente.
André Lalande no Vocabulário Técnico de Filosofia identifica vários sentidos para o termo ‘mérito’, e o diferencia do termo ‘virtude’. Enquanto este transmite a ideia de que certa qualidade pode ser obtida por completo, o primeiro resulta de um esforço em direção a um certo padrão geralmente estabelecido pelo conjunto de valores de um grupo, ou seja, um ‘moralidade’.
Dá pra perceber que tua ideia de mérito absoluto está muito próxima da ideia de ‘virtude’. Por tudo que foi dito, acredito que a proposta de avaliação da atividade acadêmica dos docentes a partir de uma noção de mérito absoluto, é impraticável e inviável. Perceba que mesmo os sistemas de avaliação apontados no teu texto como mais avançados, baseados nos critérios de impacto, são quantificacionais, pois se constituem a partir do número de vezes que um determinado pesquisador é citado. Parece-me que apoiar-se em critérios apenas quantificacionais não é uma boa saída, no entanto, a proposta do mérito absoluto, é inviável. Afinal quem é que irá dizer quem é que possui as qualidades necessárias e como determinar os critérios identificá-las? A avaliação pelo mérito absoluto, por ser subjetiva, precisa ter critérios avaliativos explícitos, e se estes não forem baseados, pelo menos de início, em um critério de quantidade, como fazer que o sistema de avaliação seja minimamente isento de valores tendenciosos?
Qual a solução que vejo para este tipo de problema que a avaliação do mérito coloca? Um sistema de avaliação que não se baseie fundamentalmente no mérito. Como seria este sistema? Não sei dizer, mas acredito que é preciso buscar nas ideias daqueles que estudam o problema da avaliação e que representam a concepção de universidade e de atividade acadêmica que acreditamos que seja a melhor.
Olá:
ResponderExcluirEsse critério meritocrático quantitativo tem um outro efeito nefasto. Acaba com a tranquilidade necessária para pensarmos e planejarmos o nosso papel/atividade profissional com a devida calma que deveria nortear as decisões e ações inerentes à nossa atividade. Desde que cheguei na UNIPAMPA em setembro de 2006 assumi esse critério meritocrático em minhas próprias atividades, pois achei (acertadamente) que só assim conseguiria os devidos financiamentos para poder trabalhar com o mínimo de condições. Embora tenha conseguido relativo sucesso, vejo hoje que a única coisa que consegui de fato foi uma gastrite que caminha para uma úlcera, insônia, irritabilidade, flutuações de humor e outras tantas sequelas. Assim, decidi no início deste ano que não mais nortearei o meu trabalho usando critérios de quantidade. Farei as coisas em outro ritmo que se adeque à minha saúde física e mental. Sugiro que todos façam o mesmo e não se curvem ao critério meritocrático. O que as universidades vão fazer? impedir-nos a progressão? demitir-nos? Tenho certeza que não. Temos que chamar os gestores tomadores de decisão à razão. Ninguém está aqui para adoecer trabalhando tentando atingir metas INATINGÍVEIS". O sistema capitalista não pode nortear o nosso trabalho. Pois para podermos fazê-lo com vontade e prazer precisamos estar fora desse sistema. Se não for assim, em breve muitos de nós estaremos afastados por motivos de saúde, aposentados por invalidez, ou mortos. Somos servidores públicos mas temos direitos como cidadãos assegurados pela constituição. Cabe a nós fazermos com que eles valham. Não só para nós, mas para toda a sociedade.
Rodrigo,
ResponderExcluirAí é que está o ponto da nossa proposta de progressão: o docente é avaliado por aquilo que ele se propõe a fazer. No começo de cada ano, faz-se uma planilha colocando as atividades, dentro das 40h, que o docente planeja para aquele ano. Vamos pegar um exemplo: digamos que eu me proponha a dar em média 8h de aula em cada semestre; então mais 8h são para preparação de aula e outras 4h para atendimento de alunos. Aí já foram 20h. As outras 20h eu me comprometo a gastar 2h por semana com a Comissão de Ensino, e as outras 18h vou fazer pesquisa. Completou-se 40h semanais.
Aí, no final do ano, eu faço um relatório em que tenho que comprovar que desempenhei estas atividades. A Comissão de Ensino me dá um certificado de que dei as 8h em média de aula e as outras 12h foram para preparar aula e atender aluno; a portaria que me nomeia representante docente na Comissão de Ensino serve para validar minha participação na mesma; e uma produção de pesquisa, seja artigo, congresso, relatório aprovado pela PROPESQ ou pela comissão de pesquisa do campus atesta que trabalhei em pesquisa. Pronto, minha avaliação está aprovada.
Não há números de produção, mas apenas que ela houve, ou seja, que eu trabalhei naquilo que eu me propus a fazer. Acredito que isso é bastante objetivo e foi de certa forma avaliado, pois não havendo problemas com as turmas em que dei aula (reclamações, denúncias, etc.) e comprovando de alguma forma que eu fiz pesquisa (as comprovações passam pelo crivo de alguém, seja da PROPESQ ou o editor de uma revista), acredito que seja suficiente. Não cabe a nós julgar quem é melhor pesquisador, ou quem é melhor extensionista: isto as agências de fomento já o fazem. Não precisamos entrar nesta roda viva de produzir loucamente qualquer coisa pra ser bem avaliado. Precisamos, como disse o Sergio ali em cima, ter paz para produzir com qualidade. E esta qualidade é comprovada pela Comunidade Acadêmica local, regional, nacional ou internacional.
Abraços!
Uma questão a ser abordada é a de que a produção docente é medida - invariavelmente - pela sua ligação com a área da pesquisa. Normalmente, a burocracia esquece-se da indissociabilidade dessa com o ensino e a extensão. Acontece é que nenhum docente é contratado para ser pesquisador em universidade pública: é sua opção pessoal e profissional. O docente, a priori, tem sua contratação voltada prioritariamente para cumprir suas obrigações com a graduação, existindo por essa razão os critérios de cumprimento de carga horária mínima etc, além de atividades administrativas (coordenação, chefia de departamento, comissões, conselhos etc), além - até - do período de preparação das aulas. Os conceitos de avaliação vigentes - e equivocados - passam por cima dessa realidade, transformando os programas de pós na busca pelo Graal. Na visão produtivista, a meritocracia praticamente ignora as razões que nortearam a contratação do docente (atividades na graduação), superestimando a produção de artigos, apresentações em congressos etc. O que passa é que o ensino e a extensão são - até - menos pontuadas, forçando docentes que atuam nessas áreas a migrarem involuntariamente para "pesquisa", dentro de premissas questionáveis, mas permitidas: a da distribuição de artigos forjados por meio de citações e que nada concluem. São meras publicações, a deriva no mar de 60 mil veículos ditos científicos no Brasil. Ora, dentro das normas existentes para o exercício docente em universidades públicas federais, o fato do professor cumprir regularmente suas funções já lhe dá o direito à progressão, vamos dizer, natural e automática, por tempo de serviço regular. Isso, por que ele (o docente), supostamente, cumpre suas obrigações. A questão da atuação do docente na pós-graduação é uma problemática a mais. Explico: o docente, para atuar na pós, ele abre na sua agenda de atendimento à graduação, espaço para a pesquisa (assim como outros abrem para projetos de extensão e aumentam sua carga no ensino da graduação). A rigor, quando se estabelece critérios produtivistas para a progressão (ou para o recebimento de recursos para projetos), o MEC e órgãos financiadores apenas estabelecem uma competição desleal, que "brinca" com os critérios numéricos e estabelece uma política injusta. Injusta por que joga nas mãos de pessoas que CONCORDAM com os métodos cienciométricos (logo, e confiança, a ponto de serem designados para cargos de confiança e decisão) para selecionarem os bons e aqueles que são os maus, os mocinhos e os bandidos. O correto passa a ser produzir por produzir, escrever por escrever, apresentar por apresentar... Promove, ainda, a formação de grupos de apoio mútuo, que troca artigos (não resultados de pesquisas) e citações. Há pouco, a medicina da UFSM foi apontada como uma das mais produtivas, senão a mais, não por projetos (que podem estar em andamento, não sei...), mas por citações mútuas. Um índice que foi aplaudido, mas que diz muito pouco para a ciência... Não preciso dizer que é extremamente questionável outro expediente utilizado por orientadores ocupados: assinar artigos e publicações junto a seus orientandos... Um universo de controvérsias que se tornaram naturais (apesar de críticas éticas) por que foram decididas como "corretas" por avaliadores...
ResponderExcluirRondon, concordo plenamente com seu comentário. E melhor: tinha esquecido desta questão dos orientadores assinarem artigos com seus orientandos sem ao menos ter tido alguma contribuição. Já presenciei situações absolutamente absurdas com relação a isso: orientadores ameaçando orientandos que não concordavam com esta política, dizendo que tirariam suas bolsas de mestrado/doutorado. Como o aluno da pós é o elo mais fraco da relação, acaba sucumbindo à ameaça, pois de nada adianta ele denunciar a falta de ética do orientador porque a comunidade é conivente.
ResponderExcluirOu seja, um sistema cheio de falhas, que permanece porque serve a vários, para os quais não é interessante questionar.
Abraço!